Família o bem mais precioso

FAMÍLIA O BEM MAIS PRECIOSO

Mais uma manhã. Sinto o sol pelas frestas da minha janela, preciso ir ao banheiro, mas já não tenho forças para caminhar mais só, não quero fazer de novo na cama, tomara que Celso venha logo.
- Bom dia, pai, vamos para o banheiro, tomar bainho, esta um sol bom, vou colocá-lo para tomar um pouco de ar.
Ah, filho, assim eu penso... Sem falar nada pra ele. Tenho medo de magoá-lo. Por que você não me ajuda a caminhar, Celso? Por que você me trata como um bebê?  Me pega no colo, me senta no vaso sanitário, me levanta, me dá banho, ainda bem que não põe essa sua mão nas minhas partes, tô vendo o dia que vai pôr. Ah, menino, aí vou te dar uns tapas.
Fico aqui sob o sol confabulando comigo, será que eles não sabem que consigo andar? Que eu consigo falar também, tenho dificuldades, mas ainda consigo, eu consigo pegar a colher para comer. Cristina, meninas! Tudo põe na minha boca, fora que não sento na mesa com eles, ficam preocupados de eu cair.
As crianças, que bom, vão conversar comigo.
- Oi, vô, como o senhor tá cheiroso!
- Crianças, deixa seu avô quieto, parem de encher o saco dele.
Ela fez isso de novo, seria tão bom conversar com quem me entende.
- Pai, vou te levar para o quarto, vou trabalhar, sua bênção.
Ele nem me olhou eu o abençoando, que pressa.
Lá vem Cristina com aquela papinha, colher na minha boca, passa o guardanapo, por final me dá água.
Daqui escuto todos na hora do jantar. Eu, ah! Já jantei, só estou escutando, como seria bom se eu estivesse junto, crianças correndo pela casa, como eu queria...
Escuto uns pingos d’água, como queria sentir os pingos no meu rosto, mas não posso, ninguém nem imagina, mas eles jamais deixariam, posso pegar pneumonia. Ah! Como sinto falta da minha véia! Pena que ela já se foi.
Amanhece de novo e tudo de novo, só que hoje fiquei no quarto.
Filhos, Filhos...
Lá vem a menina com o almoço de novo, mas hoje...
- Pai, abre a boca, vamos meu amorzinho, você precisa se alimentar. Pai, por favor.
Com dificuldade...
- Filha, por que você me trata como criança? Por que nunca deu a colher na minha mão? Por que vocês me carregam no colo como um bebê?
- Pai eu nunca quis te magoar, nem o Celso, a gente se preocupa, te amamos muito paizinho.
- As crianças me alegram, mas vocês as afastam de mim.
- Não, pai, temo por eles fazerem algo errado e o senhor não gostar, jamais tive a ideia de afastá-los.
- Vamos, menina, tô com oitenta e cinco anos, mas ainda consigo pegar a colher.
Ali almocei, enquanto ela me olhava com os olhos cheios de lágrimas.
- Obrigado, filha, pelas preocupações. Estou orgulhoso de vocês, tantos idosos que são deixados no asilo, mas vocês nunca desistiram de mim.
- Jamais, meu pai, jamais. O senhor nos carregou no colo quando não sabíamos andar, o senhor ajudou sempre a mamãe em nossos banhos, o senhor nos educou, nunca deixou faltar nada.
- Agora entendo porque me tratam assim, sinto muito Cristina, nunca parei para olhar por este lado.
- Então vamos combinar, minha filha, enquanto eu conseguir, você e seu irmão só me ajudam, quando eu não puder mais, minha menina, podem continuar a cuidar de tudo.
- Está bem, pai, nos desculpe.

- Filha querida, eu que peço desculpas, não tinha entendido seus cuidados, hoje dou graças a Deus por ter me dado filhos maravilhosos. Amo muito vocês, nunca se esqueçam, se chegar um dia que eu não puder falar, meus olhos falarão do meu amor por vocês.

Edmary  12/11/2016

A Rua

A RUA

Como foi difícil aquele dia, subir aquela rua, parecia sem fim, mas cheguei, virei a chave e abri o portão. Cheguei à porta da sala, virei novamente outra chave e entrei. Caminhei por cada cômodo, batia pequenas frestas da luz do dia, não tinha lâmpada em nenhum dos cômodos, tratei logo de ir varrendo já que estava tudo vazio, tudo, tudo, eu me sentia vazia no vazio que me adentrava, mas era preciso acabar logo, antes que tudo escurecesse.
Então fui acabando, poeira no chão misturada a pingos de água, deixaram marcas no piso claro, peguei um pano e fui passando. Enfim, chegou o momento de olhar, conferir cada cômodo.
Me peguei conferindo não cada lugar e sim cada  momento lindo que vivi, cada instante que me fez respirar diferente, e em cada lugar ficou uma lágrima de adeus.
Adeus ao cheiro do amor, adeus ao saber que não teria ninguém mais ali ao meu lado,  adeus ao meu recanto arrumado cada canto com tanto carinho, aquele cheiro entrando em minhas narinas, sentei no chão e chorei, chorei até secar as lágrimas. Eu não teria mais outro instante para dar adeus.
Creio eu que em qualquer tipo de relacionamento quando se existe o bem querer, não estamos preparados nunca para dar adeus, seja ele qual for, mas no meu caso foi preciso. Eu sentia uma dor, uma fisgada no peito, enfim, escuridão total, já não poderia ficar e nem voltar.
Aos poucos, recuperando minhas forças, a escuridão já tomava conta do lugar, levantei-me do chão, sai, fechei a porta, o portão e um último adeus: sabia que ali não teria nunca mais um motivo para voltar.


            Edmary  14/05/2015

SUPERAÇÃO

SUPERAÇÃO

Passando em uma rua próxima a minha casa avistei um pé de caju, já faz alguns meses, cheio de cajus. Uma das coisas boas de morar no interior é ter este privilégio. Todos os dias eu passava e olhava as mudanças, mas uma coisa não me agradou: observei que ele não crescia quase e suas folhas estavam feias, logo percebi que era a falta de chuva.
Mesmo assim sempre que passava, olhava e torcia para que ele desenvolvesse. Em uma tarde, graças a Deus, veio uma chuva muito forte, com ventos, trovões e raios. Que bom! Pois é uma das necessidades maiores que no momento estamos precisando.
Quando no outro dia passei não tinha nenhum caju, olhei para o chão e vi que todos estavam caídos: não aguentaram a tempestade. Fiquei chateada, mas feliz pela chuva.
Como é parte do caminho que faço para o trabalho, passo todos os dias no mesmo lugar, tenho o hábito de observar tudo, principalmente a natureza. Faz um mês que passei e observei que o pé de caju estava cheio de flores, algo que na primeira vez não aconteceu, flores lindas, pude contemplar alguns cajuzinhos renascendo, lembrei-me de duas partes da vida.
Uma historia interessante é da águia que para poder viver seus aproximadamente setenta anos precisa de ter muita resistência. Até os quarenta anos vive e consegue fugir de seus predadores, sendo que também consegue sobreviver pegando suas presas. Das unhas, do bico, de suas asas é que ela supera as adversidades, mas então chega a idade “quarenta anos“, seu bico longo não consegue pegar mais suas presas, suas unhas também longas curvam-se para baixo e suas penas já estão tão pesadas que seu voo pleno, magnífico, já não encanta.
Assim, a águia precisa escolher ficar como está e morrer a qualquer momento, ou ela vai para um lugar bem alto para fugir dos predadores e ali fica por cento e cinquenta dias. Sim, ela fica em alguma montanha bem alta e ali começa a sua metamorfose, a primeira começa com doloridas batidas do bico contra a rocha, assim ele se rompe e começa a surgir um novo bico, com o bico novo ela começa a arrancar as unhas para que nasçam novas, e, por último, com bico novo e unhas novas ela consegue arrancar suas penas envelhecidas e esperar renascer novas. Assim, após sua mudança, ela está pronta para voar e, das cinzas, surge uma águia toda pomposa, suntuosa, merecidamente.
Assim penso em outra parte de vida, “da nossa vida“. Passamos por momentos que por muitas vezes achamos que não vamos suportar, medos, angústias, tristezas, decepções, verdadeiras tempestades. Às vezes, alguém até chega a dizer que após a tempestade chega a bonança, sabemos disso, mas a espera é longa, desânimos, pensamos em tomar decisões precipitadas, muitas vezes pensamentos até ruins começam a tomar conta, a tempestade continua, até nossa fé parece que se foi, cobramos de Deus. Por quê? Assim, nossos caminhos vão acontecendo, começamos a sorrir em plena escuridão, o que antes vinha da alma.
Mas, ainda bem que muitos perseveram e agem como o pé de caju, a metamorfose da águia, deixamos que a tempestade se transforme em chuva para se renascer, que as partes que precisamos cortar são decisivas. Mas para o nosso bem, se quisermos viver mais e parar de nos arrastar, algo incrível começa a mudar e de repente vimos que tudo que antes de bom existiam estão no mesmo lugar, pessoas que nos amam, amigos que nos querem bem, o trabalho, os prazeres que antes não se enxergava estão lá. Saibam, meus queridos leitores, muitas vezes colocamos um venda nos olhos, não queremos enxergar o que é ruim, não deixamos a chuva levar, essa chuva é aquele a quem perguntamos, por quê? Sim, Deus.
Ele nunca nos deixa. Ele está nos momentos de alegria e nos momentos de tristezas. Ele não nos desampara; é Ele quem mostra o que é ruim, mas nossas vendas nos deixam cegos e, se não tomarmos cuidado, ficamos naquela mesmice, naquela lama, que vamos ao longo da nossa vida fazendo e não renascemos, nos acostumamos com o desnecessário.
Assim me lembro de uma música, É PRECISO SABER VIVER, composta por Roberto Carlos e Erasmo Carlos: “se o bem ou o mal existe você pode escolher...’
Acredito que certos momentos em nossas vidas servem de aprendizado, de superação de nós mesmos e assim quem sabe podemos passar dos quarenta, chegar aos setenta ou mais, ou deixarmos florescer aquilo que está guardado em nosso jardim oculto.
Superar sempre é um dilema que devemos viver no cotidiano. Enfim, eu escolho sobrelevar-me a tudo e se precisar a todos. E você?

04/07/2015  Edmary
O PREÇO DE UMA HERANÇA

Era uma noite qualquer, exceto pelos pensamentos que deixavam Marcos atordoado só de pensar que perderiam a casa, aliás, a fazenda que viera de todos de sua  geração.
Não acreditava que seu pai, depois de tantos anos de trabalho, deixando-os em uma vida estável, há dois anos morrera e agora tudo aquilo acabou em dívidas – um ano praticamente sem chuva acabou com a plantação, o meio de vida da família: café.
Marcos, o filho mais velho de três, só pensava no assunto daquela noite com sua mãe Ester – uma dona de casa muito humilde que de repente se viu ter que acabar com a criação dos filhos, estudos, roupas, alimentação, após a morte súbita de seu amado marido.
- Mãe, lembro-me que ainda temos tempo de reverter esse quadro, lembra-se do relógio de ouro e ponteiros de rubi que papai carregava sempre em seu bolso, uma herança de seus entes.
- Sim, filho, lembro-me. Como posso esquecer! Seu pai tinha tanto orgulho daquele relógio que bem no dia da sua morte, ainda em extremo sofrimento, pediu que eu guardasse para no caso de alguma dificuldade.
- Marcos, meu filho, em um momento de muita tristeza, ao separar a roupa para o velório de seu pai, eu coloquei no paletó que ele foi enterrado.
- Mãe, não acredito no que fez! Nem nos consultou ao tomar tal decisão e nem pensou em nós, que um dia poderíamos precisar.
- Perdoe-me, filho.
Ester amava seu finado marido, mesmo três anos transcorrido de sua morte.
Alguns dias depois desta conversa chegaram dois oficiais de justiça e conversaram com a família, que Ester desta vez colocou todos a par: Marcos, Marta e Mauricio.
- Dona Ester, nossa vinda aqui infelizmente não é para trazer boas notícias. Vocês têm sessenta dias para arrumar outro lugar para morar.
Marcos no mesmo momento saiu da sala e foi correr entre o resto de pés de café. Ali chorou, perdera tudo, justo agora que estava no último ano de Agronomia. Chorou, sentiu saudades de seu pai, ficou até tarde da noite.
Voltou para casa, todos o esperavam preocupados, sua mãe chorava sentindo-se culpada.
Marcos olhou para os três e disse boa noite; foi dormir. Dona Ester foi dormir aliviada, pois pensara ter acontecido algo ruim com seu filho.
Logo pela manhã Marcos conversou com sua mãe:
- Mãe, vou ao cemitério e ver a possibilidade de exumar o corpo de papai e pegar o relógio, ver quanto vale e pagar todas as dívidas e o que sobrar dará para guardar para nossos estudos. Outra parte para reerguer nossa vida financeira.
Sua mãe, uma mulher muito religiosa e também supersticiosa, achou que aquela atitude era errada e disse:
- Filho, não acho isso certo, afinal, eu não quis ficar com o relógio por ser uma herança de seu pai e sei o quanto ele estimava, você estará de certa forma tirando um bem dele.
- Não acredito no absurdo que estou ouvindo! Se é herança, então teria que ter ficado conosco. Mãe, a senhora prefere perder tudo a tentar recuperar nossa dignidade, nosso patrimônio? Pense bem, mamãe! Vou ao cemitério.
Dona Ester foi ao quarto chorar, abriu o armário onde ficavam as roupas de seu finado esposo, Roberto. Ficou horas passando a mão e chorando. Pediu perdão ao marido por achar a atitude de seu filho Marcos errada.
Marcos no final da tarde chegou em casa com bom ânimo e chamou a todos para uma reunião:
- Trouxe uma boa notícia a todos. Conversei com o senhor Osvaldo no cemitério, ele disse que basta a mamãe ir até lá e assinar alguns papeis de autorização, que eles exumaram o corpo de papai.
Silêncio. Continuou Marcos:
- Mãe, não expliquei o motivo, pois tive medo da cidade ficar sabendo. Como depois de dois anos pode-se fazer a exumação, essa foi a explicação que dei.
- Filho, e no caso do corpo ainda não estar decomposto?
- Mãe, neste caso eles fecham o caixão e pedem para esperar mais um pouco. Fique tranquila que é o tempo suficiente para eu pegar o relógio.
- Não acredito no que estou ouvindo, Marcos, meu filho, não tenho condições de estar lá, fazer tamanha blasfêmia!
- Mãe, não estou fazendo nada, o papai mesmo disse para que ficássemos com o relógio. Sabe o quanto no momento estamos precisando.
- Não posso fazer isso, Marcos.
Um mês depois e nada havia sido resolvido.
Marcos, revoltado, já não conversava com a mãe, pensava em alguma maneira de salvar a fazenda. Sendo o filho mais velho, achava-se na obrigação disso. Quando seus irmãos perguntavam o que podiam fazer, como eram menores, Marco sempre tentava confortá-los dizendo que tudo daria certo.
Certo dia dona Ester foi novamente ao quarto mexer nos pertences do marido. Tirou toda roupa como de costume, só que desta vez seria diferente: doaria para um asilo, queria diminuir o sofrimento que aquelas roupas lhe traziam,
Tirou todos os paletós e de repente olhou um que não deveria estar ali. Ficou paralisada, não conseguia sequer respirar normalmente, entrou em choque, sabia que ele nunca tivera paletós iguais e tinha certeza que era aquele que colocara para ele ser enterrado. Estava no caixão o paletó.
Foi recobrando a respiração, conseguindo se mover novamente, conseguiu tocar o paletó, e percebeu que tinha um pouco de terra, ficou apavorada.
Horas se passaram até que Dona Ester resolveu pegar o paletó na mão. Mexeu nele, percebeu mesmo que era terra, então respirou fundo, seu coração literalmente parecia que iria sair pela boca, mãos trêmulas, enfim, enfiou a mão no bolso, o relógio estava lá, junto a ele uma carta: novamente entrou em choque e deu um grito.
Todos da casa ouviram e correram até o quarto, que estava trancado. Marcos gritava junto com os irmãos:
- Mamãe, mamãe, abra a porta, abra, por favor!
- Está tudo bem?
E nenhuma resposta. Depois de muito gritarem, chamaram o caseiro e juntos arrombaram a porta.
Encontraram-na no chão. Lágrimas rolavam em seu rosto lendo um papel. Marcos tirou-o das mãos dela para ver porque ela estava daquele jeito.
‘Querida Ester, meu primeiro, único e último amor, por favor pegue este relógio, faça o que nosso filho está pedindo, não desejo que percam a fazenda. Apesar do relógio ser uma herança, o que deixei é muito maior que o relógio, minha maior herança é você, Ester, minha amada esposa, e meus filhos Marcos, Marta e Mauricio. Desejo, mesmo não estando com você, que eles acabem os estudos. Salve a nossa fazenda, por favor. Dê esse relógio ao Marcos e ele saberá o que fazer.
Marcos chorou, soluçou, abraçou sua mãe e perguntou como ela conseguira sozinha ir atrás da exumação do corpo de seu pai.
- Eu não fui filho, ele mandou o paletó para mim.
No dia seguinte Marcos foi até o cemitério e foi confirmado que o corpo não fora exumado.
Conversou com sua mãe, disse se ela não estava enganada quanto ao paletó. Ela lhe explicou que não e ele também confirmou um pouco de terra e poeira, foi quando dona Ester pediu a Marcos que a levasse ao cemitério: queria que exumassem o corpo.
Dias depois senhor Osvaldo ligou e disse que aquele seria o dia da exumação. Filhos e mãe foram ao cemitério e constataram que o corpo já estava decomposto – apenas ossos, e que o paletó não estava com ele, somente a aliança do casamento.
Dona Ester saiu de lá e disse:
- Filho, faça o que seu pai pediu.
O valor do relógio era altíssimo, fora feito um só para a família do senhor Roberto, teve que ser levado para São Paulo, uma cidade de porte maior, onde havia relojoarias que pudessem avaliar.
Com o dinheiro do relógio recuperaram a fazenda pagando a dívida, e ainda guardaram um bom dinheiro para os estudos dos três irmãos.
Marcos se formou em Agronomia, Marta no Magistério e Mauricio em Advocacia. Dona Ester esperou seus filhos se formarem, a fazenda ser totalmente tomada por uma boa safra de café e, após quatro anos, morreu para encontrar-se com Roberto.
Oitenta anos já se passaram e a fazenda está sendo passada de geração em geração: netos e bisnetos. E hoje, em homenagem aos precursores deste patrimônio, chama-se: FAZENDA ROBERTO E ESTER.
Nunca se esqueceram da luta de Marcos para manter a fazenda; também nunca se esqueceram do valor maior que fora ensinado pelo avô, bisavô – sempre a maior herança deve ser a família.
Aqui acaba um conto, que conto com muito gosto de contar.

25/04/2015 Edmary. 

GRATIDÃO A AMÉLIA

Estou a pensar há alguns dias de como ainda tenho boas nostalgias a serem contadas, para mim isso é um prazer escrever de pessoas que marcaram a minha vida e a de tantos outros.
Assim, veio-me a grande vontade de homenagear uma mulher amável, de um nome que lembra até uma música: Amélia – “Amélia que era mulher de verdade, Amélia não tinha menor vaidade”. Sim, minha tia-avó Amélia, é sobre ela que escrevo o quanto representou na vidas de muitas pessoas.
Pequenina veio da Itália, de uma cidade chamada Gênova, com seus pais: meus nonos, Eurico e Olga, suas irmãs Maria e Elizabete – minha avó a quem sempre me refiro de Coração Ruivo. Fez-se crescer, aprendendo a costurar para ajudar nas finanças da casa. Sempre com grande bondade aprendeu a fazer de tudo um pouco.
Casou-se com Antônio e assim começou a construir uma vida. Teve seis filhos: Ismael, Marlene, Eurico, Marli, Nelson e Marisa. Mesmo com os filhos, com as obrigações de esposa, jamais desistiu de outros. Essa mulher nunca teve limites: cuidou dos filhos, de sua querida mãe, de seu esposo. Um exemplo foi sobre minha avó: sempre que pode a ajudou, pois das irmãs era a que mais necessitava.
Há poucos dias minha mãe contou-me algumas passagens da vida dela na vida de Amélia. Como madrinha de minha mãe procurava fazer de tudo para agradar e sempre que costurava um vestido para uma das filhas, fazia um de cor diferente para minha mãe. Minha mãe a amava muito, sofreu muito com a perda de sua madrinha que considerava uma segunda mãe.
Lembro-me, em minha infância, de quando ia passear em sua casa e, meu tio avô Toninho, nome carinhoso por todos, tinha um quartinho de ferramentas e permitia que brincássemos lá. Para mim era festa, alegria de criança.
Quando eu entrava na casa de minha tia eu sentia cheiro de amor! Aí se pergunta se amor tem cheiro... Sim, para mim tinha. Era algo diferente, a alegria dela nos contagiava. Colocava o avental e já corria fazer uma bela macarronada, aquele queijo ralado na hora. Lembro-me dos sorrisos, de como ali existia amor entre filhos, o cheiro era aconchegante; abraços: confesso que não tinha vontade de ir embora.
Mulher linda, carinhosa, que nos abraçava, nos beijava, com tanta simplicidade que só Amelia teria. Nunca vi uma tristeza, quando conversava sobre algum problema, sempre tinha uma palavra de conforto e de fé em Deus, que deveríamos de ter.
Tia, quanta saudade você deixou, quantos presentes deixou, a união da família; teve vinte netos e amou cada um, cumpriu seu papel, nunca mostrou cansaço, cada vez que nos via tinha uma pequena lembrança para nos dar e essas lembranças não tem preço.
Há pouco tempo tenho conversado com um de seus netos, Douglas, e pude de certa forma vivenciar o seu amor novamente com quarenta e oito anos. As lembranças aumentaram. O amor e a saudade dele pela avó... Tudo demonstra que nada do que escrevi aqui não seja real.
Ele tem uma herança dela: uma máquina de costurar que ele sempre pediu a ela antes dela partir. Acredito que nunca será vendida, talvez passada para a próxima geração.
Hoje tenho gratidão a Deus que permitiu que minha tia-avó Amélia fizesse parte de nossas vidas, depois a ela mesma por ter trazido tanto amor, por ter deixado tanto amor. Deixou uma herança que não tem preço: humildade, caráter, simplicidade. Deixou muitas coisas boas guardadas em nossa caixinha do pensamento, e sempre que abrir esta caixinha quero encontrá-la para poder tentar ser um tiquinho da mulher Amélia. 

08/02/2015 Edmary

A ARTE DE AMAR

Ultimamente venho cobrando-me a escrever, não sei por qual razão, mas escrevo só quando tenho inspiração, são coisas vinda do coração, assim como disseram ‘você é romântica’, e como sou! Meus pensamentos chegam, às vezes, ao extremo do romantismo.
Assim veio a reflexão que tantos fazem do final de ano. Pego-me lembrando e revivendo alguns momentos: meu casamento – hoje posso dizer bem o que é cumplicidade, companheirismo, amizade de marido, não que tudo é mar de rosas, mas me sinto realizada.
Meu trabalho: entre os prós e os contras eu fico com toda a parte melhor que há: as crianças. Para quem não sabe, sou funcionária pública e trabalho em dois locais, sou monitora concursada, completando às oitos horas do dia no maternal; voltando às crianças: assim como Jesus disse ‘vem a mim as criancinhas’, porque estas são verdadeiras, se gostam demonstram com  todo carinho, mas se for o contrário, não fazem questão de dizer, e doa a quem doer. São exemplos de amor, carinho, etc.
Minha vida familiar, não reclamo e nem devo, tenho pais maravilhosos, uma irmã: minha melhor amiga; tenho duas sobrinhas que amo muito. Posso escrever que sou uma pessoa abençoada por Deus.
Este ano venci duas cirurgias, sendo uma mais complexa, mas creio que estou curada, outra mais simples – mas cirurgia é sempre cirurgia, difícil.
Sei que todos fazem uma retrospectiva de vida no final do ano, não vou ser uma exceção, assim veem em minha memória também as amizades: posso agradecer pelas poucas amizades que ao longo do ano construí, é complicado escrever sobre este tema, abre a porta para sentimentos: decepções de quem julgávamos ser nossos amigos e descobrimos que são amigos de conveniência; existiram amigos de observatório, aquele que só te observa para poder apontar só os defeitos, porque qualidades os  olhos são cegos... Assim foi o ano: existem os curiosos que só querem saber como você está, mas não ficam alegres com sua alegria, com suas conquistas.
Mas às poucas amizades posso até escrever um trecho da música de Renato Teixeira chamada ‘A amizade sincera’: “A amizade sincera é um santo remédio / É um abrigo seguro / (...) / Por isso se for preciso / Conte comigo, amigo disponha”. Obrigada, amigos que conheci este ano, foi um privilégio conhecê-los e espero sempre ser digna de vossa amizade.
Agora, o principal de tudo, nada seria possível em minha vida se Deus não estivesse presente em cada momento, seja de tristeza, de alegria, de decepções, de lágrimas, de conquistas, de sentir sua presença, meu Criador. É inexplicável, tu és Onipotente, Universal, a Ti agradeço por estas linhas, pela inspiração, mas principalmente pelo amor que sinto pelo próximo e que eu possa sempre ser digna do seu amor.
Por isso mais um trecho de música que me faz lembrar do amor, do amor ao próximo, da vida: “(...) A arte de sorrir cada vez que o mundo diz não / (...) E eu desejo amar todos que eu cruzar pelo meu caminho” – música ‘Brincar de viver’, interpretada na voz de Maria Bethânia.   


            23/12/2014 Edmary

FESTA PARA O SEU VALDOMIRO

           
          Poderia ser um dia como tantos outros. Parecia ser uma madrugada comum. Todos acordando, uns se preparando para tirar o leite, outros se preparando para o café da manhã, outros para se encaminhar à escola. Mas alguma coisa acontecia de diferente: uma movimentação estranha, sons diferentes vindos do canavial.
            Seu Zé notou que não havia vento e, pela hora, cinco da manhã, ainda dava para enxergar as últimas estrelas no firmamento. A claridade do dia ainda não havia despontado. Foi até ao curral das vacas e acionou o botão do seu radinho, mas naquele dia não funcionou. Começou a se preparar e, com suas mãos com calos da enxada, puxava o leite.
            Mas seu Zé continuava a escutar o forte e diferente barulho vindo do canavial que, com os primeiros raios da manhã, começou a observar que dançavam e dançavam sem parar, todos na mesma direção, como um balé ordenado. Tudo aquilo o assustava. Olhava outros lugares do sítio e nenhuma árvore se mexia como o canavial.
            Passado meia hora, seu Chico gritava na porteira:
            - Seu Zé, o seu Zé!
            - Entre, seu Chico.
            Seu Chico abriu a porteira mais que depressa, dizendo logo:
         - Seu Zé, que estranho, nem vento vi por estas bandas, mas o canavial lá de casa está balançando sem parar, é de assustar! Nem deixei as crianças se levantarem...
          - Seu Chico, e não é que aqui está a mesma coisa?!
          Às seis horas parou tudo. Voltou tudo ao normal. Seu Zé ficou tranquilo. E pensou coisa à toa: ‘Isso não deve ser nada, vou cuidar da ração’. E assim caminhou até o paiol.
          Dona Rosa chamou o marido e comentou que ainda estava assustada com o fato, que não ia mandar Carlos e Júlia para a escola. Seu Zé apenas disse:
            - Se quem sabe, Rosa.
          Perto das sete horas tudo recomeçou: o canavial dançando, mas com mais força. Existia um místico de dança e luta.
          Toda vizinhança fechou as casas assustadas, ventos fortes nem pensar! Mas não era normal aquilo. Parecia que pessoas gritavam no meio do barulho, isso se passou o dia todo alternando de hora em hora. Já eram vinte e três horas e cada vez aumentava mais aquele som irreconhecível, talvez triste, talvez de choro, talvez de desespero, e até mesmo poderia ser de alegria, talvez.
           A polícia muito longe.
           Na casa do seu Chico, apavorados, ninguém ainda havia se deitado:
          - Pai, é o fim do mundo! A gente vai morrer!
          Dona Geni, ajoelhada, chorava e pedia perdão – precisava de momento de oração.
          Dona Rosa tremia; seus filhos debaixo da mesa. O som entrava pelo telhado e tudo parecia que ia cair. Seu Zé enfiou as vacas no paiol, as galinhas dentro da casa e os outros vizinhos todos igualmente.    
          Seu Zé pensou no vizinho, seu Valdomiro. Homem sozinho que, pelos acontecimentos daquele dia, devia estar desesperado. À meia noite tudo parou novamente e, como estava acontecendo hora sim, hora não, ninguém acreditava mais no silêncio.
          Nas próximas horas nada aconteceu. Às cinco da manhã, a rotina começou: as pessoas dirigiram-se aos seus afazeres. O dia amanheceu e, como de costume, lá pelas dez horas se reuniram na vendinha da estrada, e começaram a comentar sobre o terror do dia anterior.    
          Seu Zé notou que seu Valdomiro não estava entre os vizinhos, como de costume. Chamou o seu Chico e rumaram para a casa de seu Valdomiro.
            Gritaram na porteira por seu Valdomiro e nada. Chamaram outras vezes e nada. Acabaram entrando. Viram o seu Valdomiro ainda deitado e confidenciaram que, possivelmente, com os seus oitenta e cinco anos, nada escutara. Mas na casa de seu Valdomiro havia sobre a mesa muitos pratos, muita comida: uma verdadeira festa.
            - Se sente bem, seu Valdomiro? Por que ainda não se levantou? – indagou seu Zé.
            - Hoje é um dia especial, seu Zé...
            - É o seu aniversário, seu Valdomiro?
            - Não, seu Zé.
            - Mas está uma comilança só na cozinha, seu Valdomiro. Muitos pratos sujos...
            Seu Valdomiro apenas ouvia...
            - Ficamos assustados ontem. Os canaviais dos arredores todos assustados. Ninguém saiu de casa, mas aqui parece que até teve festa!
            Seu Valdomiro, homem humilde, após um breve silêncio:
            - Teve uma festa sim, homem, toda a parentaiada veio aqui...
            - Mas um dia o senhor me disse que não restou ninguém da sua família, que todos estavam debaixo da terra...
            - Pois é – retruca seu Valdomiro – e estavam. Mas ontem vieram aqui me visitar. Foram todos enterrados aqui em volta do sítio... Vieram me convidar para morar junto com eles... Só estava esperando alguém chegar aqui.
            O silêncio tomou conta do lugar. A fala do seu Valdomiro era pausada, como se o cansaço dos anos pesasse mais naquele momento. E continuou:
            - Seu Zé, seu Chico, quero ser enterrado junto com eles, junto com meus avós, junto com meus pais, minha muié, meus fios e meus netos...
            Seu Zé, atordoado com o que estava ouvindo, retruca:
          - Deixa disso, homem, o senhor ainda vai viver muito tempo! Tudo o que o senhor viu não passou de um sonho.
            E seu Valdomiro retruca no mesmo instante:
            - Que sonho lindo de viver! – expira para o sono eterno.
            Enterram o seu Valdomiro. Todos tristes, mas com a idade era normal.
           Cinco anos se passaram e o seu Zé alugou o terreno do canavial para uma fábrica. E, numa das atividades da fábrica, cavando descobriram um cemitério e pelo jeito pertencente a uma única família.

        Seu Zé, inconformado, murmurou: ‘Oh, amigo Valdomiro, me perdoe, pois era aqui que deverias ser seu derradeiro lugar, como fez em seu último pedido’.

          26/11/2014 - Edmary